Sexta-feira, 30 de Maio de 2008

Aprendiz de Pastora

 

 Foi ontem. A meio da tarde regressava ao meu pueblo por uma estrada perdida do interior do Alentejo. Às vezes corto as rotas para fugir à rotina e escolho caminhos desertos de pessoas, e carros, mas cheios de vida e de cor. Uma experiência estética. Uma chuva suave e amiga alternava com períodos de sol brilhante, dando uma especial luminosidade a toda a paisagem, onde muitos sobreiros apresentam ainda um verde fresco, quase alface, na folhagem saciada de humidade deste mês de Maio, tão generoso de águas.
Ao longe, uma figura humana corre aflita gesticulando no meio da estrada, na outra direcção, mais à frente um tractor agrícola atento reduz a velocidade e encosta. Aproximo-me. Sigo agora muito devagar. À minha esquerda duas ovelhas, gordinhas, aproveitam a dádiva dos céus e da natureza, enchendo a barriguita de erva farta. Uns metros mais à frente, passo agora pela figura humana que descrevo inspirado pela raridade da sua aparência face aos arquétipos alentejanos que conheço bem. Senti-me dentro de um filme de David Lynch. Calças castanhas largas, cinto fino branco, camisa florida e um elegante e urbano chapéu de palhinha envolve os cabelos brancos de uma velhinha, cujo tom de pele, muito claro, associados à inépcia pastoril, deu-me logo a certeza de estar perante uma “concidadã” nórdica desta grande Europa, nossa casa comum.
Abri o vidro para respirar a cena e ouvi um sentido e sonoro“Thank you, Thank you, sir”. Respondi-lhe “You´re wellcome”. No bulício de uma cidade ter-lhe-iam passado a ferro a ovelhinha tresmalhada que transportava carinhosamente ao colo.
Esta “pastora de três ovelhas” aprende, na terceira, ou quarta idade (vá-se lá saber) um dos ofícios mais antigos do mundo. Tem a sua dimensão épica comungar com a natureza assim. Respeito e admiro. Apenas não tive tempo de lhe dizer que não dará muito jeito correr atrás das ovelhas com botinhas de salto alto. É que desengonça muito a corrida. Perigo de entorses. Um alentejano profissional da coisa teria mandado o cão.

publicado por ensinartes às 19:25
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Quarta-feira, 14 de Maio de 2008

So long Robert

 

Morreu ontem, aos 82 anos e idade, Robert Rauschenberg (RR) artista plástico norte americano (N 22 Out. 1925 Port Arthur/Texas + 12 Mai. 2008 Florida). RR foi uma referência importante na minha vida de estudante de Belas Artes nos idos oitenta, na taciturna e orgulhosa cidade invicta. Na biblioteca da ESBAP (hoje FBAUP) imerso nas razoáveis colecções e álbuns de arte contemporânea, passei longas tardes aperfeiçoando o olho e alimentando a mente com as imagens de RR, Andy Warhol, Roy Liechtenstein, Robert Motherwell e outros que, então, a vida cultural do país e da cidade não conseguia fazer passar por cá ao vivo. O Museu de Serralves só veio colmatar essa falta depois, já quase na despedida penosa da cidade, dos amigos e das rotinas estudantis.
 
Tive já a sorte e o privilégio de ver os seus trabalhos ao vivo, uma vez que são, na sua maioria, bastante texturados, e até mesmo absolutamente tridimensionais, pois RR situou a sua prática artística mais relevante num meio caminho entre a pintura e a escultura-assemblage. Daí que a fotografia de catálogos e livros fazem “perder” uma boa parte das sensações visuais, tácteis e compositivas que tornam o seu projecto e percurso artístico deveras peculiar e que só ao vivo podem ser devidamente apreciados.
 
Em 1998, o Museu Guggenheim, fez-lhe uma merecida retrospectiva em Nova Iorque e a exposição, em itinerância global, como agora é moda, chegou a Barcelona em 1999 ou 2000 (?) (Fundació Lacaixa, creio?) onde então continuava os meus estudos na Facultat de Belles Arts. Deliciei-me então nessa exposição memorável, onde fui várias vezes, anotar o comportamento dos adolescentes (visitas das escolas) perante as obras pois fazia parte da absorvente investigação que então desenvolvia.
 Recentemente, tive a ocasião de me “raspar” da conferência Nacional de Educação Artística, no mesmo Porto, para ver, mais uma vez, a sua exposição, a derradeira feita em vida, no Museu de Serralves, onde o artista aliás compareceu bastante debilitado acompanhado inclusivé por uma equipa médica.
 
 Descendente de índios Cherokee, por via da avó (“full blood cherokee native american indian”) há semelhanças biográficas curiosas entre RR e outros artistas importantes da história da arte contemporânea.
Tal como Vicent Van Gogh, criado num meio fundamentalista cristão, esteve num primeiro momento destinado a uma carreira religiosa de pastor (desistiu por não lhe permitir a dançar!) e tal como Vincent chegou já muito tarde ao mundo das artes visuais (só depois cumprir o serviço militar na marinha).
 
A fama e consolidação do seu trabalho artístico chegou em 1964 quando foi premiado na bienal de Veneza, que então, como agora, constituía um evento legitimador e “lançador” (para o bem e par o mal) de carreiras no mundo das artes visuais.
 
 
 
 
Mas o que ainda muito antes da sua consagração em Veneza lhe trouxe notoriedade e fama foram as suas «combinações» de objectos tridimensionais com tinta e objectos da daily life quotidiana, muitas vezes recolhidos nos contentores do lixo, as famosas "combine paintings", que vieram a criar um estilo, hoje "clássico" porque repetido. Nos anos 60, em resposta aos seus colegas da pop, em particular ao incontornável e hipermediático Andy Warhol, começou a incluir imagens nos seus trabalhos, incluindo fotografias de John F. Kennedy impressas utilizando a técnica de serigrafia sobre a tela tradicional de pintura

 

 

 

 

RAUSCHENBERG, Robert
Retroactive I
1964
Pintura a óleo e serigrafia sobre tela
84 x 60 in. (213.4 x 152.4 cm)
Wadsworth Athenuem, Hartford, Connecticut


publicado por ensinartes às 02:12
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Terça-feira, 6 de Maio de 2008

O saco de berlindes

 

Não tendo conseguido fabricar uma “atiradeira” (ver abaixo post quase homónimo), dentro dos preceitos de robustez, eficácia e… segurança, que uma boa arma de arremesso deve ter, traído pela ansiedade, tinha prendido as borrachas à forca com lãs e o resultado já o relatei. Infelizmente, as boas bofetadas – e respectiva dor - não se comunicam via net, nem via texto, mas podem imaginar algo entre a picada de vespa irritada, mais larga, a apanhar a carita toda, uma espécie de aguardente no interior do nariz e um formidável formigueiro de pequeninas luzes a piscar e a deslocar-se em todas direcções. Como o fogo pirotécnico de Agosto, nas festas orgulhosas da Nossa Senhora da Glória.

 Mas se algumas características de personalidade me marcam, a teimosia (a minha costela alentejana!) e a persistência, serão seguramente as que melhor se me encaixam e estruturam. Andei quase um verão inteiro a “juntar” berlindes. Compravam-se, depois de muita choradeira, nas mercearias do Ti Rocha e do Ti Magriço. Aqui eram estrategicamente exibidas dentro de grandes frascos de vidro com uma enorme tampa por cima, alimentando as birras dos mais pequenos, para desespero das respectivas mães.

Cada berlinde tinha uma pequena haste saliente envolvida por um rebuçado, que era tragado em segundos, para logo depois se proceder à remoção da haste e ao desbaste da pequenina saliência restante no chão áspero de cimento da loja.

Com sorte e muitas idas a buscar leite, queijo de cabra e mais recados, talvez pudesse ter direito a dois berlindes por semana. Julgo que custavam um tostão, nos inícios dos anos setenta. Era uma moedinha de cobre que escurecia com o uso, quase até ao negro, com um diâmetro muito igual às actuais moedas de dois cêntimos de Euro. As omnipotentes cinco quinas, com as chagas de Cristo, num lado e, no outro, umas folhas de oliveira, essa árvore tão mediterrânica e tão sagrada.

 

Bom, lá “comprei” uma fisga a um dos camaradas da “meia” geração seguinte. Lembro-me muito bem que me custou um saco de berlindes, um custo elevado na ingénua economia de troca infantil. Uma economia afectiva. Vinte e quatro ao todo. Contados três vezes! Fechado o negócio, lá dei, com muita pena e alguma indecisão, o meu saquinho de berlindes, recebendo em troca a “temível”.

Andei umas noites a pensar se tinha feito bom negócio, ou não. Nesse verão ainda recuperei alguns, pois no jogo do berlinde tinha o meu dedinho certeiro. Mas o jogo do berlinde sempre me pareceu muito sedentário das sombras, largos e ruazinhas da aldeia.

Já a fisga impelia-me para as periferias da charneca, para os chaparrais e salgueirais do ribeiro sabadoiro, que hoje já não tem água. Estes pastos e estes cheiros tão opostos, da verdura de Maio e da secura de Agosto, foram e são ainda, verdadeiramente, os aromas inesquecíveis da minha terra. Entraram-me pelas narinas, pelo corpo e pela alma.

Bolas! Dei-me agora conta que este ano nem tive tempo para ir aos espargos.


publicado por ensinartes às 02:31
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