Ver post de 8 de Abril denominado obituário ampliado.
O ciclo, trágico, repete-se... perante a impotência e a incapacidade
tolhidas pelo grotesco da situação.
Satanás subiu ali...das profundezas da bestialidade e... não houve arcanjo que lhes valesse.
Esta semana não perdemos por sete a um, mas por milhões a zero.
Ontem homenageamos os cingeleiros, oferencedo-lhes um almoço simples e umas musiquinhas do seu tempo, tocadas a concertina.
Os cingeleiros, ou "sarapatelos", eram uma espécie de micro classe social, "os mais ricos entre os pobres" na minha aldeia de outrora. Tinham um junta de bois, ou de vacas, um carro de tracção animal e eram mais ou menos orgulhosos e independentes, praticando uma agricultura de sobrevivência. Se conseguiam vender os escassos excedentes, com regularidade, enriqueciam, se não, eram obrigados a fretar o seu sustento ou...a mudar de profissão. Confinavam-se uma determinada área geográfica da vila e nos 44 km quadrados da freguesia. Distinguiam-se claramente dos assalariados rurais, os "serrotes", no orgulho e na altivez que caracteriza as pessoas cujo sustento só depende de si.
Hoje já não há nenhuma junta de bois em lenta e ansiosa chiadeira pelas ruas poeirentas da vila. A última circulou há cerca de trinta anos. E hoje existem só 8 carroças puxadas por mulas. É o progresso...pois...substituidos impiedosamente pelos pequenos tractores Kubota...uma revolução, mesmo para os que têm só uma nesga de terra.
Nasci e fui criado no largo do rato, onde existia a única "oficina" de carros de bois da freguesia e lembro-me bem da agitação, entre a pequenada, quando um carro se dirigia às "boxes" para restauro das pesadas rodas, cintadas a ferro. Existiam quatro pedras em cálcareo, toscamente trabalhadas, de forma mais ou menos prismática, aí com uns oitenta centímetros de altura, dispostas de modo a formar quatro bases. Nas horas de lazer infantil era aqui o nosso castelo. Conquistado e reconquistado inúmeras vezes...à moirama, aos romanos ou aos indios, no fluxo e refluxo repetitivo das brincadeiras de crianças.
Mas nas horas de trabalho adulto, retiravamo-nos, curiosos, para uma distância tolerada. As rodas dos carros de bois, depois de desmontadas,eram colocadas na horizontal, sobre essa estrutura de rocha, ficando estabilizadas num espécie de ranhura esculpida em "U" no topo das quatro pedras. O ti "Sousa" único artesão nesta arte na aldeia, colocava uma nova cinta de ferro que iria abraçar a estrutura em madeira do rodado, numa grande fogueira no chão. Em brasa, e com uma espécie de grandes tenazes, muito compridas, era este anel de fogo laranja colocado à volta da roda e molhado com água de um regador de zinco, para voltar a apertar.
Entre o fascínio pelo fogo e pelo vapor de água, nós, a pequenada, acompanhávamos à distância, reverentes e respeitosos, toda esta labuta e depois, num ápice, lutávamos pelos centímetros de metal que sobravam deste anel de ferro, que era diligentemente cortado pelas mãos experientes do ti "Sousa". Estas sobras constituíam uma espécie de lingotes de ferro escuro e tinham para nós, criançada, um valor-moeda, na estranha importância que a infância costuma dar a muitas coisas fúteis. Ainda quentes, depois de disputados em brigas rasteiras, punhamo-los logo nos bolsos ao abrigo de cobiças próximas. Ainda hoje me lembro como bem aqueciam a nossa pele e rasgavam as nossas calças, com as arestas metálicas rebarbadas, essas anónimas moedas rectangulares, sem valor facial, na curtíssima viagem que fazíamos, ufanos e mais "ricos", para as nossas casas, a escassos metros dali. Nessa época levei da ti Nazia, a minha mãe, uns bons ralhetes por andar sempre com os bolsos rotos. Hoje, passados quase quarenta anos, continuo com os bolsos rotos...pelos motivos que vos são comuns.
"Finalmente lembraram-se de nós!" Disse um dos cingeleiros ao ser convidado.
Estiveram à volta das três dezenas e respectivas companheiras. O quase século de vida (ou os filhos, vá-se lá saber) não permitiu vir alguns, quanto a outros, o quase século de vida não os impediu de virem, e até - pasme-se! - de ensaiarem uns passos de dança. Notável jovialidade.
Iremos conversar com eles, um dia, com mais calma e ouvir as histórias que terão para nos contar. Daqueles que fizeram a sua vida à frente de (2 x ) meia tonelada de carne e músculo e (2 x ) 1 par de cornos... mais ou menos afiados. Porque, como bem diz o conhecido provérbio chinês, oportunamente citado pelo nosso amigo Ludgero Mendes, "cada velho que morre, é uma biblioteca que arde".
É ir... antes que seja tarde. Irremediavelmente tarde.
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