Entrei, por fim, pela Frei Universitat de Berlim adentro.
Mais uma experiência radical nas diásporas académicas a que gosto de me submeter.
O desafio do Deutsche sprache, dos rudimentos linguísticos que esperava aprender, do ambiente disciplinado germânico, atracções suficientes para a escolha da Universidade berlinense.
Estação de metro Dahlem Dorf. Edificio prata (silberlaube) metálico e quente, bem identificado entre o arvoredo luxuriante destas cercanias de Berlim.
No chão uma alcatifa vermelho vivo abafa os passos da estudantada. Nos corredores intermináveis e identificados com o sugestivo nome de "Strasse", houvem-se várias línguas nórdicas dificeis de identificar, outras mais familiares, como o francês e o inglês e, até, o portugês arrastado e aquecido dos trópicos, num casal de brasileiros que segue descontraidamente rumo à cantina da Universidade.
Não posso deixar de reparar nas muitas estudantes islâmicas, em regra, aos pares ou em pequenos grupos, bem identificadas pelos chador que recatam do olhar público essa parte do corpo humano - o cabelo - para alguns tão lasciva, para outros apenas ... bela.
São tão estranhas as culturas humanas, as suas religiões e as suas tradições que chocam com a modernidade a todo o instante.
Algumas jovens exibem maquilhagens cuidadas, lábios com baton carregado, outras tem piercings e molas nos chador com brilhantes, coraçõezinhos cor-de-rosa, Hello Kittys e outros ícones de infâncias recentes. Os lenços, cuidadosamente puxados para a frente, fazem uma espécie de pala sobre a testa. Outros, talvez mais ousados, deixam parte desta à mostra, dando mais realce ao rosto e aproximando-se dos usos ocidentais deste adereço - o lenço - que tende a ser cada vez mais raro nos preparos femininos.
Os padrões, com desenhos florais ou abstractos, são cheios e largos, escuros e tristonhos, em preto, ou azul escuro.
Sigo pelo corredor principal duas boas centenas de metros e volto para trás, atento a tudo, em exploração antropológica.
Cruzo o corredor principal e arrisco aleatoriamente pela Strasse 23, um corredor mais estreito e mais silencioso. Por cima das portas, pintadas de verde alface, os nomes dos professores.
Paro num pequeno hall onde se avista um dos inumeros retiros interiores ajardinados do imenso complexo arquitectónico. São uma espécie de claustros interiores a fazerem lembrar os da Universidade de Évora. Aprecio, por uma larga janela, a verdura, dois melros pousados num galho de uma árvore. Deve ser bom estudar num lugar assim.
No lado oposto ao janelame, duas das estudantes do chador, sentadas no chão, abrem envergonhadamente as suas mochilas e tiram dois pequenos tupperwares de plástico. Minúsculos, cabem numa mão. Não sei se serão motivos económicos, ou de dieta religiosa, o que levou estas duas estudantes a esta solução. Sinto que a minha presença as perturba e saio dali o mais rapidamente que posso imaginando como é dura a vida de (alguns) estudantes nestes tempos dificeis.
Chego, por fim, ao aeroporto de Tegel, um dos que servem Berlim.
E...desgracia, dou comigo já nos corredores exteriores sem a mala.
Procuro retroceder, dirijo-me a um policia sentado numa secretária à entrada, do tamanho de um urso, bigodinho minúsculo, do tipo "carreirinho de formigas"...Nein!. Mostro-lhe o talão de embarque...Nein! E pelas frestas da porta de vidro vejo, ao fundo, a minha "cinzenta" às voltas no tapete...solitária, ali mesmo à mão, mas separada por um policia tamanho XL. Esta minha mala tem o nome da mula do ti Fanas.
Mesmo assim, o polizei indicou-me, renitente, (ressabias antigas) num inglês sofrível o Office "Lost and Find"...Volto a perder-me.
Sinto a minha costela de alentejano a trabalhar a todo o vapor.
Dirijo-me ao Balcão da Lufthansa, mais indicações, "You go straight ahead, near the elevator you turn right, and next left, you find a stairs and turn right....!
Porra "left, right, left right", perdi-me outra vez.
Dirijo-me ao empregado da limpeza, com ar de quem conhece realmente o lugar.
Meia idade, pele escura magrebina, sorriso simpático, uma calma estonteante. É da Tunísia, país de revolução recente.
Dirijo-me em inglês, e pergunta-me se pode explicar-me em francês. Eis a globalização no seu explendor
Um português num país de lingua alemã, a falar com um árabe, em francês...
Deixa o seu carrinho atulhado de baldes e esfregonas... e leva-me "left right left right" até a uma espécie de barracão, onde se tem que esperar.
Agradeço ao amigo providencial. Sempre senti uma química entre latinos e árabes...emfim misturas de sangues, a funcionar com efeito retardado. Talvez.
Naquele pré-fabricado aquecido por um sol ibérico, uma surpresa primaveril de berlim, uma americana protesta "Wait one hour, Shit! This is the third world. Damn! I hate little airports " E eu ali, muito reconfortadinho, na ideia de que não me acontce só a mim.
A seguir, entram mais dois, também yanquies, "The same problem".
E eu quase ufano, a sentir os cavalos-vapor da minha costela alentejana a perderem o gás.
A minha filhota, a de sete anos, confessou há dias em casa o resultado de mais um sadio debate espontâneo no recreio da sua escola. Daqueles filosófico-existenciais. Potentes.
Os meninos tinham-se juntado todos, para discutir assuntos de "alta" importância e isolaram-se em exclusivo masculino (isto também se aprende de pequenino).
A uma distância prudente da irritante intromissão feminina, imagino-os, no pátio da escola, em roda, de cabecinhas bem juntinhas a conferenciarem assuntos que precocemente os começam a incomodar. Coisa a merecer plenário, pois claro.
Então, após alguma insistência da curiosidade feminina (o silêncio de alguns "valentes" foi comprado com uns chocolatitos), eis a poderosa revelação: parece que os infantes estão muito contentes por terem "nascido" meninos...pois isto de ter bébés deve doer muito... porque é preciso fazer muita força (!).
As meninas ficaram mais descansadas, pois julgavam que o "assunto" era bem mais grave.
Enfim, palavras para quê...
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