Segunda-feira, 21 de Abril de 2008

Bofetada de fisga I

Nasci e cresci feliz numa aldeia. Como qualquer menino socializei-me e aculturei-me no sotaque característico da minha terra, que descobrimos ser sempre tão particular, à posteriori, quando nos confrontamos com a oralidade e a escrita da chamada alta cultura que nos vai aparecendo ao caminho.

Brinquei, pulei, joguei à bola, subi árvores, descobri incontáveis ninhos, apoderei-me de não menos numerosas crias, roubadas estupidamente aos progenitores, entre chiadeiras aflitas, a que tinha o mórbido prazer de alimentar e ver crescer…numa gaiola, diligentemente construída para o efeito.

Melros, gaios, pintassilgos, nada me escapava. Aves que cada vez se vêm menos aqui pelos campos, agora monotonamente eucaliptizados. Salva-se, ainda, o ar puro a eucaliptol. Ao menos isso. Hoje entristece-me ver um pássaro preso. Remorsos de outrora, ampliados pela consciência ecológica que julgo ter cultivado.

Pois bem, disponho-me hoje a falar-vos da minha primeira experiência como “craftsman” de fisgas. “Atiradeiras” como aqui na aldeia chamavamos a essa popular arma de arremesso.

As fisgas eram um acabado exemplo de refuncionalização criativa de desperdícios, algo que a actual sociedade do hiperconsumo desconhece completamente. Uma boa fisga dependia da qualidade da forca, (as de madeira de marmeleiro eram as melhores) da natureza da borracha (as vermelhas, das câmaras de ar das rodas bicicletas) e da maleabilidade do cabedal (o melhor cabedal era o que era cortado das “línguas” das botas velhas) onde se puxava a pedrinha rolada que, nas mãos de qualquer atirador exímio, transformava-se numa arma letal. Pelo menos para pássaros, rãs e animais rastejantes que passassem ao alcance. Com os meus nove, dez anos, estava completamente siderado pela capacidade da arma que via ser fabricada e manejada com destreza pelos mais velhos da meia geração seguinte. Depois de tanto ver, e tanto desejar, um dia resolvi fazer uma fisga. Lá pus os meus olhinhos a mirar os marmeleiros da fazenda, até encontrar a bifurcação de ramos desejada para a forca, a navalhinha, sempre omnipresente, no bolsinho da minha indumentária surrada, fez o resto. Ouvi uns ralhetes justos e oportunos dos meus avós. Aquele marmeleiro dava gamboas, uns marmelos tão grandes e tão doces que valiam por um almoço. Pois agora tinha-lhe amputado uns membros sadios para alimentar a minha obsessão.

Depois, procurei pela borracha da câmara de ar irrecuperável, ao Sr. Humberto, o mecânico da oficina da aldeia, e sacrifiquei a “língua” de cabedal de umas botas de inverno, quase novas, que me custou uns tabefes, muito bem dados pela minha mãe.

Lá arranjei um fio qualquer de atar, no cesto da costura, cada vez mais acelerado na ânsia de me ver ao mesmo nível dos outros e de participar em incontáveis batalhas e bem-aventuradas caçadas. Arma pronta. Experimentar.

Procurei o projéctil mais redondinho entre os seixos da estrada poeirenta (o alcatrão à minha aldeia chegou muito tarde). Aconcheguei-o no cabedal, entre as borrachas, como o caçador de elefantes que beija a bala fatal (tinha visto esta cena num filme). Estiquei, estiquei, estiquei, com maior potência braçal possível. E zás plás, uma das borrachas desprendeu-se da forca e esbofeteou-me violentamente na cara. Dei um grito de dor, vi muitas estrelas a orbitar em meu redor, e fiquei durante alguns minutos a tentar saber o que se tinha passado. Na ânsia de obter a minha arma o mais depressa possível, tinha prendido a borracha à forca com lãs, em vez da regulamentar guita forte, de atar chouriços. Erro fatal.

Ainda me vem o sabor a borracha, na boca, quando hoje vejo uma fisga, mesmo aquelas moderníssimas, de forca metálica, em alumínio, e borrachas redondas esverdeadas, com que os pescadores no despoluído Sorraia atiram asticot para enganar os peixes do rio.


publicado por ensinartes às 02:01
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De Sónia Rosmaninho a 23 de Abril de 2008 às 22:05
Memórias...uma palavra que me diz muito, sempre disse, e sinto que cada vez mais me diz...não consigo esquecer nem abstrair-me das minhas memórias, e tudo o que as envolve.Acho que é um modo de ver a vida, e no fundo de nos perceber-mos a nós próprios, talvez...há gente que foge a sete pés delas, não sei porquê! imagino...não conseguem lidar com o passado, nem com aquilo que um dia foram...mas também nunca conseguirão perceber-se, conhecer-se, enfim...
...existem dentro de mim lembranças, que por vezes permanecem serenas e adormecidas cá dentro, e outras vezes, brotam vigorosamente, inesperadamente, recordando-me de coisas que, hoje, me fazem caminhar em frente, seguir um percurso, perceber o porquê de querer escolhê-lo..
nunca gostei de aprisionar seres tao livres como os pássaros, sempre me irritou quem o fazia. Ser livre...
e voar...na infância, e por tê-la passado no meio de chilreios de pássaros, do canto do galo, do ar respirável, das árvores, da terra..Terra que tanto prazer me dava apanhar com as mãos, senti-la correr pelos dedos...lembro-me perfeitamente do toque produzido pela terra molhada pela água fresca, que corria a toda a velocidade, quando o meu pai regava a sua amada horta...é indescritível!e deve ser uma sensação parecida à dum pássaro que voa livre...o fresco da terra, o fresco da água e um pôr do sol a avistar-se ao longe..passava o meu tempo assim, nessa altura, entre muitas outras coisas que fazia. Coisas, mas nada de bonecas, nem de tv, nem de casa. As minhas bonecas, para terem uma ideia, à já vinte e um anos, que continuam intactas, sem uma única perna nem braços partidos, pelo simples motivo que, durante os meus belos tempos na dita infância, fui feliz a brincar na rua, a sujar-me com terra, a inventar o que fazer e com que brincar com tudo o que encontrava pelo caminho. Faziam parte da minha lista de brinquedos predilectos, pedras, pedaços de madeira, terra, e até formigas! Sim Formigas! Mas não para arrancar perninhas nem mutilar de alguma forma, mas sim, e porque na minha juvenil inocência julgava estar a cumprir o meu dever, ajudáva-as na sua trabalhosa função de levar o seu alimento do sítio onde o encontravam até ao seu formigueiro(ou pelo menos, aquele que eu achava ser o formigueiro delas!). O resultado de tudo isto, ja se sabe, elas fugiam a sete patas, largando tudo aquilo que traziam afincadamente preso...e eu ficava desolada, e então percebi, que em vez de ajudar estava a dificultar e trabalho destas criaturinhas, que de pequeno só tem o tamanho...

Espero, que esta pequenas memórias tornadas em palavras, sirvam para reavivar outras memórias, ou para que muitos se questionem porque se é tão feliz quando se inventam brincadeiras com os objectos mais variados e menos caros, menos coloridos, com menos efeitos especiais, menos cenas de acção, objectos que não são um último modelo saído fresquinho de uma qualquer publicidade, mas objectos e coisas que se tornam noutras coisas e que tornam crianças felizes em adultos consciêntes...


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