Com mais esta “estória” volto, rebarbativo, ao tema da fisga, como sabem os meus leitores um objecto, para mim, verdadeiramente evocador de memórias longínquas.
Conta uma velha lenda sobre a fundação de minha aldeia que andava El-rei D.Pedro I, “O Cruel”, em actividade venatória, embrenhado nestes matagais da margem sul ribatejana quando, de repente, e já separado dos seus monteiros e restante pessoal de apoio, deparou-se com um animal que lhe terá espantado a montada.
Acto contínuo, tombou com o seu cavalo (as “estórias” dizem sempre que os cavalos dos reis são brancos, este se calhar também seria) num pego profundo do ribeiro que ainda hoje, timidamente, ainda por ali ali passa no período invernal. Em vez da água cristalina daqueles tempos, transporta agora chinelos velhos, pneus, garrafas de plástico, e tudo que de mais a nossa civilização- a da superabundância - ”oferece” à natureza numa generosidade imparável.
Sabendo-se, por Fernão Lopes, que este monarca era gago (“embargado no falar”, na expressão do cronista-mor do reino) terá sido, portanto, a gaguejar que terá pedido a intervenção divina, na eminência de se afogar.
Eis que a Nossa Senhora lhe apareceu “em Glória” sobre uma árvore (qualquer semelhança com Fátima será pura coincidência) e lhe concedeu essa graça aflitamente desejada. A tradição popular identifica uma cabeça zoomórfica, inserida na parede traseira da multicentenária igreja paroquial, com esse “bicho” que terá provocado esse acidente quase fatal. É uma cabeça pequena, em pedra calcária, de onde sobressaem duas orelhas, numa cabeça mais ou menos informe, a fazer lembrar um pequeno felino e que remata a parede traseira do templo, mais ou menos na continuação da linha de beirado.
Há uns anos, julgando que tinha um certo jeito para o desenho, predispus-me a desenhar o brazão de armas da agora (elevada a) “Vila” de Glória do Ribatejo e a Comissão de Heráldica da Associação dos Arqueólogos Portugueses não aceitou esse desenho abstracto do bicharoco desconhecido e quase informe, pintado em cinza calcário, substituindo-o por uma cabeça de lince, em vermelho Ferrari. Coisa foleira. Não o lince, animal muito bonito, por sinal, mas aquela silhueta que então foi imposta por V. Exªs até à eternidade.
Pois era nesse "bicho" de pedra que ensaiávamos as nossas fisgas até o zelador da igreja ter vedado o recinto e as playstations terem substituído a fisga na panóplia diversificada de brinquedos masculinos da nova geração de infantes.
Invadia-me, naqueles meus nove ou dez anos, um sentimento estúpido de vingança, no que era acompanhado pela restante turba, de arma em riste, sempre pronta a esticar e a atirar ao bicho: “Ah foste tu que ias matando o «nosso» rei! Ora toma! Ora toma!” E as pedrinhas faiscavam na esculturazinha, que se foi decapando com a continuidade de gerações de atiradores, até ao estado quase informe actual.
Serve-me esta “estória” para pensar em duas coisas A primeira é que a vingança, efectivamente, é sempre um sentimento estúpido, ainda para mais quando completamente descontextualizada em relação ao tempo e ao espaço. A segunda, é que a noção de património, tangível (os edifícios, as obras de arte…as “esculturazinhas-de-pedra-com-a-cabeça-de-bicho”) e intangível (as lendas, o cancioneiro, os costumes, as danças …), quanto mais cedo entrarem na escola, melhor. Daí a importância da escola olhar para o ambiente que a rodeia, para que se possam dinamizar projectos que relevem a importância destas coisas e destas "formas", para que mais cedo comecem a ser protegidas e compreendidas. E se a escola for frequentada por alunos estrangeiros, tanto melhor, pois que se lhes permita debruçarem-se sobre as suas raízes, trocando e apresentando, para os seus compagnons de route da cultura dominante, as experiências e os aspectos mais basilares das suas próprias raízes culturais. Este é mundo que alguém já denominou de “aldeia global”, mas no qual as velhas formas de manifestação e de transmissão cultural, demasiado monolíticas e pouco ou nada criativas, tendem rapidamente a ser substituídas por práticas ainda mais niveladoras e empobrecedoras da diversidade e das diferenças. Ora, são estas últimas que tornam indubitavelmente ainda mais ricas todas as culturas humanas em que tais condições se verificam. Repita-se, diversidade e diferença. E, entre o passado e o futuro, é este o salto que nos é impingido. Este salto que dizem para darmos
é maior do que a nossa própria perna, e nesta fobia pela modernidade, esquece-se o presente, e é nele onde fatalmente vivemos, tendo o passado como referência e o futuro como horizonte.