Terça-feira, 25 de Novembro de 2008

Atirar no “Bicho”

Com mais esta “estória” volto, rebarbativo, ao tema da fisga, como sabem os meus leitores um objecto, para mim, verdadeiramente evocador de memórias longínquas.

Conta uma velha lenda sobre a fundação de minha aldeia que andava El-rei D.Pedro I, “O Cruel”, em actividade venatória, embrenhado nestes matagais da margem sul ribatejana quando, de repente, e já separado dos seus monteiros e restante pessoal de apoio, deparou-se com um animal que lhe terá espantado a montada.
Acto contínuo, tombou com o seu cavalo (as “estórias” dizem sempre que os cavalos dos reis são brancos, este se calhar também seria) num pego profundo do ribeiro que ainda hoje, timidamente, ainda por ali ali passa no período invernal. Em vez da água cristalina daqueles tempos, transporta agora chinelos velhos, pneus, garrafas de plástico, e tudo que de mais a nossa civilização- a da superabundância - ”oferece” à natureza numa generosidade imparável.
Sabendo-se, por Fernão Lopes, que este monarca era gago (“embargado no falar”, na expressão do cronista-mor do reino) terá sido, portanto, a gaguejar que terá pedido a intervenção divina, na eminência de se afogar.
Eis que a Nossa Senhora lhe apareceu “em Glória” sobre uma árvore (qualquer semelhança com Fátima será pura coincidência) e lhe concedeu essa graça aflitamente desejada. A tradição popular identifica uma cabeça zoomórfica, inserida na parede traseira da multicentenária igreja paroquial, com esse “bicho” que terá provocado esse acidente quase fatal. É uma cabeça pequena, em pedra calcária, de onde sobressaem duas orelhas, numa cabeça mais ou menos informe, a fazer lembrar um pequeno felino e que remata a parede traseira do templo, mais ou menos na continuação da linha de beirado.
Há uns anos, julgando que tinha um certo jeito para o desenho, predispus-me a desenhar o brazão de armas da agora (elevada a) “Vila” de Glória do Ribatejo e a Comissão de Heráldica da Associação dos Arqueólogos Portugueses não aceitou esse desenho abstracto do bicharoco desconhecido e quase informe, pintado em cinza calcário, substituindo-o por uma cabeça de lince, em vermelho Ferrari. Coisa foleira. Não o lince, animal muito bonito, por sinal, mas aquela silhueta que então foi imposta por V. Exªs até à eternidade.
Pois era nesse "bicho" de pedra que ensaiávamos as nossas fisgas até o zelador da igreja ter vedado o recinto e as playstations terem substituído a fisga na panóplia diversificada de brinquedos masculinos da nova geração de infantes.
Invadia-me, naqueles meus nove ou dez anos, um sentimento estúpido de vingança, no que era acompanhado pela restante turba, de arma em riste, sempre pronta a esticar e a atirar ao bicho: “Ah foste tu que ias matando o «nosso» rei! Ora toma! Ora toma!” E as pedrinhas faiscavam na esculturazinha, que se foi decapando com a continuidade de gerações de atiradores, até ao estado quase informe actual.
Serve-me esta “estória” para pensar em duas coisas A primeira é que a vingança, efectivamente, é sempre um sentimento estúpido, ainda para mais quando completamente descontextualizada em relação ao tempo e ao espaço. A segunda, é que a noção de património, tangível (os edifícios, as obras de arte…as “esculturazinhas-de-pedra-com-a-cabeça-de-bicho”) e intangível (as lendas, o cancioneiro, os costumes, as danças …), quanto mais cedo entrarem na escola, melhor. Daí a importância da escola olhar para o ambiente que a rodeia, para que se possam dinamizar projectos que relevem a importância destas coisas e destas "formas", para que mais cedo comecem a ser protegidas e compreendidas. E se a escola for frequentada por alunos estrangeiros, tanto melhor, pois que se lhes permita debruçarem-se sobre as suas raízes, trocando e apresentando, para os seus compagnons de route da cultura dominante, as experiências e os aspectos mais basilares das suas próprias raízes culturais. Este é mundo que alguém já denominou de “aldeia global”, mas no qual as velhas formas de manifestação e de transmissão cultural, demasiado monolíticas e pouco ou nada criativas, tendem rapidamente a ser substituídas por práticas ainda mais niveladoras e empobrecedoras da diversidade e das diferenças. Ora, são estas últimas que tornam indubitavelmente ainda mais ricas todas as culturas humanas em que tais condições se verificam. Repita-se, diversidade e diferença. E, entre o passado e o futuro, é este o salto que nos é impingido. Este salto que dizem para darmos
 é maior do que a nossa própria perna, e nesta fobia pela modernidade, esquece-se o presente, e é nele onde fatalmente vivemos, tendo o passado como referência e o futuro como horizonte.
 
 

publicado por ensinartes às 23:30
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Segunda-feira, 21 de Abril de 2008

Bofetada de fisga I

Nasci e cresci feliz numa aldeia. Como qualquer menino socializei-me e aculturei-me no sotaque característico da minha terra, que descobrimos ser sempre tão particular, à posteriori, quando nos confrontamos com a oralidade e a escrita da chamada alta cultura que nos vai aparecendo ao caminho.

Brinquei, pulei, joguei à bola, subi árvores, descobri incontáveis ninhos, apoderei-me de não menos numerosas crias, roubadas estupidamente aos progenitores, entre chiadeiras aflitas, a que tinha o mórbido prazer de alimentar e ver crescer…numa gaiola, diligentemente construída para o efeito.

Melros, gaios, pintassilgos, nada me escapava. Aves que cada vez se vêm menos aqui pelos campos, agora monotonamente eucaliptizados. Salva-se, ainda, o ar puro a eucaliptol. Ao menos isso. Hoje entristece-me ver um pássaro preso. Remorsos de outrora, ampliados pela consciência ecológica que julgo ter cultivado.

Pois bem, disponho-me hoje a falar-vos da minha primeira experiência como “craftsman” de fisgas. “Atiradeiras” como aqui na aldeia chamavamos a essa popular arma de arremesso.

As fisgas eram um acabado exemplo de refuncionalização criativa de desperdícios, algo que a actual sociedade do hiperconsumo desconhece completamente. Uma boa fisga dependia da qualidade da forca, (as de madeira de marmeleiro eram as melhores) da natureza da borracha (as vermelhas, das câmaras de ar das rodas bicicletas) e da maleabilidade do cabedal (o melhor cabedal era o que era cortado das “línguas” das botas velhas) onde se puxava a pedrinha rolada que, nas mãos de qualquer atirador exímio, transformava-se numa arma letal. Pelo menos para pássaros, rãs e animais rastejantes que passassem ao alcance. Com os meus nove, dez anos, estava completamente siderado pela capacidade da arma que via ser fabricada e manejada com destreza pelos mais velhos da meia geração seguinte. Depois de tanto ver, e tanto desejar, um dia resolvi fazer uma fisga. Lá pus os meus olhinhos a mirar os marmeleiros da fazenda, até encontrar a bifurcação de ramos desejada para a forca, a navalhinha, sempre omnipresente, no bolsinho da minha indumentária surrada, fez o resto. Ouvi uns ralhetes justos e oportunos dos meus avós. Aquele marmeleiro dava gamboas, uns marmelos tão grandes e tão doces que valiam por um almoço. Pois agora tinha-lhe amputado uns membros sadios para alimentar a minha obsessão.

Depois, procurei pela borracha da câmara de ar irrecuperável, ao Sr. Humberto, o mecânico da oficina da aldeia, e sacrifiquei a “língua” de cabedal de umas botas de inverno, quase novas, que me custou uns tabefes, muito bem dados pela minha mãe.

Lá arranjei um fio qualquer de atar, no cesto da costura, cada vez mais acelerado na ânsia de me ver ao mesmo nível dos outros e de participar em incontáveis batalhas e bem-aventuradas caçadas. Arma pronta. Experimentar.

Procurei o projéctil mais redondinho entre os seixos da estrada poeirenta (o alcatrão à minha aldeia chegou muito tarde). Aconcheguei-o no cabedal, entre as borrachas, como o caçador de elefantes que beija a bala fatal (tinha visto esta cena num filme). Estiquei, estiquei, estiquei, com maior potência braçal possível. E zás plás, uma das borrachas desprendeu-se da forca e esbofeteou-me violentamente na cara. Dei um grito de dor, vi muitas estrelas a orbitar em meu redor, e fiquei durante alguns minutos a tentar saber o que se tinha passado. Na ânsia de obter a minha arma o mais depressa possível, tinha prendido a borracha à forca com lãs, em vez da regulamentar guita forte, de atar chouriços. Erro fatal.

Ainda me vem o sabor a borracha, na boca, quando hoje vejo uma fisga, mesmo aquelas moderníssimas, de forca metálica, em alumínio, e borrachas redondas esverdeadas, com que os pescadores no despoluído Sorraia atiram asticot para enganar os peixes do rio.


publicado por ensinartes às 02:01
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